A circunstancial nulidade da Constituição no STF e a tirania dos princípios de quem julga

Cada ser humano tem a capacidade e o direito de escolher o que é bom para si. É o que se conhece como “livre arbítrio”. Do ponto de vista individual, o limite é o direito alheio que está estabelecido na lei. No mundo jurídico, é o que conhecemos como princípio da legalidade. Este princípio fundamental impõe ao indivíduo e ao Estado a submissão ao império da lei. Portanto, o que é bom para alguém e não é proibido por lei pode ser feito. E quando há conflitos, entra em ação o poder estatal para normatizá-los e dirimi-los. A teoria que envolve esse estudo é longa e passa por Maquiavel, Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu e muitos outros autores, inclusive mais recentes. A evolução desses estudos culminou em uma construção em que o poder estatal é tripartido: poderes legislativo, executivo e judiciário, cada um com a sua função constituída definida, no caso do Brasil, na Constituição da República.

A criação de regras é feita por meio de leis, elaboradas pela própria sociedade, por meio dos seus representantes. O que pode, ou não, a lei dirá. No Brasil, vivemos em uma democracia. O povo escolhe seus representantes e estes elaboram as leis. Na construção do ordenamento jurídico, não há como afastar a influência de todas as correntes de pensamentos filosóficos, religiosos e culturais. A legislação deve ser fruto desse mosaico.

Nesse contexto, define-se o que é crime ou não, o que é permitido ou não. Por exemplo: por conta do que determina a Constituição, a criminalização ou descriminalização de algum fato é competência exclusiva do Congresso Nacional, onde as leis podem ser criadas, alteradas, aprimoradas, e, eventualmente, do ponto de vista de alguns, até pioradas. É a única instituição que tem legitimidade para tal. Portanto, se aprovado pelo Congresso Nacional, ou por uma Assembleia Nacional Constituinte, pode-se descriminalizar o uso de drogas, apologia ao crime, aborto, eutanásia, reduzir a idade penal, instituir pena de morte, casar pessoas do mesmo sexo, casar crianças, parentes, enfim, pode-se mudar o ordenamento jurídico brasileiro em diversos aspectos. Basta o Congresso Nacional decidir.

Identicamente, um juiz pode arquivar um processo, demorar a julgar, desconsiderar provas, pedir mais provas, acelerar um julgamento, retardar um julgamento, utilizar-se de dispositivos legais para que não julgue o processo, dentre outras coisas. Ele só faz isso porque a lei lhe dá esta possibilidade. Um tribunal também tem suas alternativas para conduzir os processos. A sociedade reclama de falhas na tutela jurisdicional por deixar de receber direitos de extrema valia, como indenizações ou mesmo condenações de criminosos que ceifaram vidas. Assiste ainda a diversas penas serem prescritas e cidadãos que já cumpriram suas condenações continuarem encarcerados, seja porque faltam juízes, oficiais de justiça, serventuários, ou por outro argumento mais conveniente.

Não podemos atribuir todas as falhas na prestação da Justiça à ineficiência do Judiciário, da mesma forma que não podemos lhe isentar de todas. A realidade, é que, de alguma forma, há uma precariedade na tutela jurisdicional, como eventualmente pode haver no funcionamento dos outros poderes, e vários direitos dos cidadãos são lesados diariamente. Mesmo nestes casos, nem o Congresso Nacional e nem o Poder Executivo agem para diminuir o Poder Judiciário, ainda que este respeitado Poder tenha, em alguma situação, se mostrado fragilizado no cumprimento do seu dever institucional. Isso porque os poderes devem ser independentes, mas harmônicos entre si. Cada poder faz o melhor que pode, dentro dos limites de suas atribuições expressamente definidas na Constituição.

Infelizmente, temos visto o desprezo pela Lei Maior e violações de importantes princípios, defendidos pela maioria da sociedade brasileira, em temas que, sistematicamente, têm chegado ao Supremo Tribunal Federal como questionamentos sobre direitos que não foram inseridos no ordenamento jurídico pela instituição competente: o Congresso Nacional. Isso tem acontecido com suporte em um fundamento frágil. Tem-se usado de forma deliberada e repetida o argumento de que os julgamentos foram baseados em princípios, talvez porque a legislação fosse omissa, desatualizada ou mesmo errada. Está ficando claro que esta preferência por princípios é uma rota de fuga para anular dispositivos constitucionais e legais. Mais grave é que o expediente utilizado é uma violação à tripartição de poderes, coluna importante do Estado Democrático de Direito, já que, em última instância, cabe ao Congresso Nacional decidir sobre estes temas.

Para contrariar a Constituição, há sempre uma via sinuosa de uso de princípios habilmente escolhidos, palavras e citações convenientes, e mais uma vez, o STF usurpa a prerrogativa legislativa do Congresso Nacional. O uso deliberado e continuado do argumento de que o julgamento foi feito baseado em princípios tem deixado clara a estratégia de que, tendo em vista não conseguirem alterar a Carta Magna pelos expedientes democráticos, elaboram uma engenharia para contrariá-la, como se a estivessem interpretando, para atender a grupos ou a vaidades. O Brasil é um país de um único idioma. Não há motivos para que haja dúvidas de entendimento quando o texto constitucional ou legal são cristalinos e objetivos. Entendimentos são construídos com uma engenhosidade tão descompromissada com a intenção do legislador que conseguem entender da lei algo contrario ao que o seu texto prescreve.

Uma lei pouco citada, mas fundamental para o nosso sistema jurídico brasileiro, a Lei de Introdução do Código Civil, afirma em seu artigo 4º: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Evidentemente isso expressa que vale o que está na lei. Os princípios não devem ser usados a todo tempo para fundamentar julgamentos contrários aos mandamentos constitucionais e legais, em especial quando tratam de assuntos em que as casas legislativas, ouvindo o que deseja a sociedade, ainda não entenderam ser a hora de inserir no ordenamento jurídico.

A afirmação de que o Congresso Nacional demorou a decidir é a pior possível, pois o Judiciário também demora, e não raramente. A demora pode ser uma opção sensata. Um juiz pode demorar a decidir para não cometer injustiça. O processo pode não estar adequado ainda à formação da sua convicção. Os tribunais também. E o Congresso Nacional, por que não?

O Brasil consagrou-se no uso do direito positivado que prestigia o que está escrito na lei. Em alguns países, há o julgamento com base nos costumes, conhecido como Direito Consuetudinário. No Brasil, os costumes também são fontes de direito, como transcrito acima da Lei de Introdução ao Código Civil. Mas isso ocorrerá quando a lei for omissa. Usar deliberadamente princípios, desprezando, especialmente, a Lei Maior, é entender que ela é omissa. Quando ela não for, é anulá-la.

Ademais, os costumes e princípios que devem ser utilizados, quando a norma é omissa, são os da sociedade brasileira, não os de sociedades alienígenas ou mesmo os defendidos por membros da Corte julgadora. Os julgadores deveriam valorizar a vontade da sociedade expressa na Constituição, ou mesmo os costumes e princípios defendidos no Brasil.

Para se julgar com base em princípios, deve-se tomar como inexistentes, tanto a previsão legal, quanto os costumes. A disposição legal prevalece, seguida da analogia, dos costumes, e, só por fim, dos princípios gerais de direito. Todavia a Constituição e as leis não são omissas em temas relacionados a vários julgamentos fundamentados em princípios específicos, convenientemente escolhidos, para julgar-se contra a previsão constitucional e legal.

Daí, tem-se a primeira marretada na segurança jurídica: anular deliberadamente um dispositivo constitucional. A segunda, é que se julgou com fundamentos desalinhados com o que pensa a maioria. E a terceira, pior, por ser uma espécie de tiro de misericórdia, foi a usurpação das prerrogativas de outro Poder constituído. O STF usurpou as prerrogativas das duas casas legislativas e reformou a Constituição Federal.

O STF tomou, em alguns casos, a postura de tornar-se também poder constituinte, por autoimposição. Seus 11 ministros, nenhum deles eleitos para legislar, em uma única sessão de julgamento, fazem o mesmo que só quatro seções no Congresso Nacional podem fazer, depois de a matéria ser votada duas vezes em cada casa (Senado Federal e Câmara dos Deputados), com quóruns qualificados de votos de pelo menos sessenta por cento dos seus membros, ao todo 513 deputados e 81 senadores. É o pior que poderia ser feito para a democracia. Uma alteração na Carta Magna sem legitimidade moral, mesmo que tenha o efeito erga omnes (contra todos).

Posturas como estas deixam a sociedade insegura com relação à validade do que está escrito na Constituição e nas leis brasileiras. Esta postura do Supremo Tribunal Federal diminuiu, no mesmo ato, a credibilidade do Congresso Nacional e da Constituição da República, criando insegurança jurídica e desconfiança sobre a tutela jurisdicional do Estado Brasileiro, onde os juízes da mais alta Corte julgam com base nas suas opiniões, mesmo se estas estiverem negando a letra da Lei Maior e normas infraconstitucionais aprovadas e sancionadas pelos poderes competentes, dos quais o Poder Judiciário não é parte.

A partir de agora, homossexuais podem constituir família e adotar crianças: contra a Constituição desprezada, mas a favor do pensamento dos ministros do STF. Bebês anencéfalos podem ser mortos ainda no ventre da mãe: contra a Constituição anulada, mas a favor pela mesma cartilha de princípios. O STF pode alterar a Constituição, em vez de ser seu guardião, porque seus ministros resolveram assim, neutralizando o que 513 deputados e 81 senadores, com mandatos conferidos pela população, debatiam nas Casas Legislativas.

A arrogância de cidadãos que entendem que conhecem mais o mundo que os seus contemporâneos, que sabem o que é “bom” para a sociedade mais do que ela própria representada no Congresso Nacional tem vilipendiado o Poder Legislativo, desrespeitando-o com palavras e atitudes. Este típico ativismo totalitário e desrespeito ao Congresso Nacional tem encontrado espaço em diversas camadas sociais e amparo na instituição que deveria ser a guardiã da Carta Magna.

Por conta de decisões do STF que alteraram o que a letra da Constituição e das leis preconizavam, ao arrepio do que se deliberava no Congresso Nacional, tramita na Câmara de Deputados proposta que visa resgatar prerrogativa das Casas Legislativas baseada no artigo 49, XI, da Carta Magna que afirma “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: XI – zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”. O Congresso, com esta medida, visa restabelecer o óbvio. Retomar o seu espaço. Cumprir a sua missão protegendo, inclusive, a sua reputação enquanto Poder constituído.

Daí, fica a questão: a quem e a que interessaria desmoralizar o Congresso Nacional? Fomos nós, cidadãos, que entregamos os mandatos dos componentes das casas legislativas. Desmoralizá-los é desmoralizar-nos. Contudo, ativistas estão protestando veementemente fingindo não enxergar o massacre da Constituição e do Congresso Nacional. Uma verdadeira asfixia a princípios democráticos. Por outro lado, quando há uma reação do Congresso para que suas prerrogativas sejam preservadas, e não usurpadas por outro Poder, colocam o STF como intocável e o Legislativo como violável.

Querem dar ao STF uma legitimidade particular para, em alguns casos, avocar para si, de forma ad hoc, as atribuições de outros poderes, ignorando a Constituição e até mesmo julgando-a inconstitucional. Enquanto isso, tentam desmoralizar o Congresso Nacional, legítimo legislador, só porque os princípios lá defendidos estão em desacordo com o que estas pessoas defendem, não raramente, princípios atentatórios contra a família, contra a vida, e contra os valores defendidos pela maioria. Algumas questões polêmicas decididas pelo STF estavam em debate no Congresso. A demora de decisão, seja no Congresso Nacional ou mesmo no Judiciário, é uma alternativa, muitas vezes para que o debate flua e o tema amadureça o suficiente. O tempo adequado para decidir questões no Judiciário, este Poder define, e para o Legislativo, o próprio também define. Assim, porque o STF decidiria alterar a Constituição sob alegação de que o Legislativo foi inerte?

Se um juiz leva anos para decidir uma lide, e um tribunal não é diferente, imagine 513 deputados e 81 senadores. O debate é mais intenso, a dialética é mais complicada. O mesmo STF que decidiu legislar, não consegue fazer o Judiciário ser célere o suficiente para evitar que muitas pessoas morram sem ter seu direito reconhecido. Se a preocupação é com a excelência e o direito alheio, seria bom cada instituição fazer sua autocritica, enquanto cumprem as suas atribuições. Enquanto isso, o salutar é que a Constituição, as leis e o Congresso Nacional sejam respeitados, bem como todas as instituições. Assim, o povo também o será.

Para tentar afastar a influência do pensamento democrático na formação das leis, tiram o foco do que realmente interessa: a defesa da democracia e das instituições democráticas, com seus ônus e bônus. Se o Congresso é conservador, na avaliação de alguns, ou progressista, na avaliação de outros, é porque a sociedade representada também possui essas correntes de pensamento. Sendo assim, por que desconsiderar o que pretende esta sociedade? É no debate político que se chega ao equilíbrio e não com ações ditatoriais alopradas de suprema intelectualidade.

Para servir de reflexão, merece destaque o que aconteceu na França, país que tem na sua história o mais importante fato que marcou a defesa dos direitos humanos: a Revolução Francesa. É um país não menos desenvolvido do que o Brasil no ponto de vista social, econômico, filosófico, jurídico e político. A Corte Constitucional, equivalente ao STF, também recebeu uma proposta para examinar a equiparação da união homossexual à união entre homem e mulher, como aconteceu no Brasil com o STF. A Corte Constitucional da França, respeitando o seu papel e o do legislativo, não aceitou “legislar”, alegando que a apreciação daquela Corte não poderia substituir a do legislador. O STF agiu diferente: preferiu usurpar a atribuição de legislar, ignorando o que a própria Constituição, da qual deveria ser guardião, mandava. Aliás, parece que os mandamentos constitucionais foram rebaixados, pelo STF, a simples pedidos constitucionais: podem ser atendidos ou não.

Por conta do cenário acima descrito, o Poder Constituinte Originário e o Derivado, com previsão e prerrogativas definidas na Carta Magna, cedem espaço ao novo poder constituinte sem a mesma credibilidade ou previsão constitucional: o Poder Constituinte Terceirizado, atuante à margem da Constituição no Supremo Tribunal Federal.

Estes lamentáveis fatos colocam a sociedade insegura de quais mandamentos constitucionais são efetivamente fortes e quais os que podem ser tratados como “patos mancos”. Como o Poder afetado foi o Legislativo, lembro que o artigo 49, XI, da Constituição, infelizmente desprezada, afirma que “É da competência exclusiva do Congresso Nacional: XI – zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”. Precisamos de um STF forte e respeitado, mas como guardião da Constituição Federal, enquanto os demais poderes, também fortes, cumprem os seus papéis. Só assim podemos acreditar no Estado Democrático de Direito. Na democracia, não há espaços para arrogâncias. A História deixa claro o resultado de ditaduras de toda ordem. Nós não queremos isso por aqui.

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Rubens Teixeira. Doutor em Economia pela UFF. Mestre em Engenharia Nuclear pelo IME. Pós-graduado em Auditoria e Perícia Contábil pela UNESA. Engenheiro de Fortificação e Construção (civil) pelo IME. Bacharel em Direito pela UFRJ (aprovado na prova da OAB-RJ). Bacharel em Ciências Militares pela AMAN.

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