Enquanto o capitalismo global prospera, o Estado Contemporâneo parece estar perdendo seu poder. Esse crescente desafio à soberania dos Estados em todo o mundo parece advir da incapacidade do mesmo de se adaptar aos novos rumos traçados entre o poder das redes globais e o desafio imposto por identidades singulares, perdendo, em alguns casos, sua própria identidade.
De fato, sua capacidade instrumental tem se revelado gravemente comprometida pela globalização das principais atividades econômicas, da mídia e da comunicação eletrônica, pela invasão de culturas estrangeiras, bem como pela internacionalização da produção e do investimento. Tais fatores, em um contexto macro, têm representado forte ameaça ao poder – e à própria identidade – do Estado.
A conclusão é patente: os Estados Contemporâneos, até então clássicos exemplos de repositório de poder, estão perdendo o controle sobre componentes fundamentais de suas políticas econômicas, social e cultural. E essa limitação tem ocasionado, hodiernamente, no Estado, uma estranha – e até então impensável – crise de identidade. É que o mundo já não cabe em um Estado, já não tem fronteiras, e os principais fatores de influência político-social se movem alheios aos limites estatais e, regra geral, revelam-se não mais facilmente identificáveis, como outrora ocorria.
Com efeito, representa idéia cada vez mais contraditória imaginar que empresas possam atuar em mercados globalizados e integrados arcando com grandes diferenciais de custo em termos de benefícios sociais, atuando com diferentes níveis de regulamentação que variam de país para país.
Ao revés, a atuação dessas empresas, que em sua grande maioria, por força da globalização, não têm qualquer vinculação com um determinado Estado específico, agem tão-somente naqueles países que ofertam “melhores” condições fiscais a favor dos empresários, em detrimento do salário ofertado aos empregados e com enorme prejuízo social à região “beneficiada” com as instalações da fábrica.
Não fosse só isso, insta frisar que qualquer alteração no quadro fiscal e/ou com o surgimento de novos pontos de oferta de emprego mais “vantajosos”, essas empresas, com o poderia econômico que detêm, rápida e facilmente deslocam suas dependências e seu maquinário para esses novos “paraísos”, deixando para trás o rastro do capitalismo voraz, com enormes malefícios sócio-políticos junto ao Estado até então tomador dos serviços.
É dizer: hoje, as grandes empresas, por meio da tecnologia da informação, têm condições de se estabelecer em diferentes locais e se manter integradas a redes e mercados de produção global, desencadeando, nesse quadro, um espiral descendente em termos de concorrência nos custos sociais.
A percepção que se tem é que o Estado Contemporâneo vem sendo cada vez mais destituído de poder para exercer controle sobre a política monetária, definir orçamento, organizar a produção e o comércio, arrecadar impostos de pessoas jurídicas e honrar seus compromissos visando a proporcionar benefícios sociais.
Em resumo, o Estado Contemporâneo perdeu a maior parte de seu poder econômico – embora, é certo, ainda detenha certa autonomia para estabelecimento de regulamentações e controle sobre seus sujeitos.
Esse cenário, desfavorável ao poder e à identidade do Estado Contemporâneo, em boa parte também advém da forte influência da mídia nos dias atuais. Realmente, o controle sobre a informação e entretenimento e, por meio dele, sobre opiniões e imagens, sempre foi, historicamente, instrumento de sustentação do poder do Estado.
Nos primórdios da evolução dos meios de comunicação, a maior parte das redes de televisão de todo o mundo era controlada pelo governo, sendo que as estações de rádio e jornais dependiam de possíveis restrições por parte das autoridades, mesmo em países democráticos.
Mas tudo isso mudou na vigência do Estado Contemporâneo, e essa transformação foi gerida pelo avanço da tecnologia, que produziu a diversificação dos meios de comunicação e a integração de toda a mídia. A explosão das telecomunicações e o desenvolvimento dos sistemas de transmissão via cabo também se agregaram para viabilizar o surgimento de um poder de transmissão e difusão de informações sem precedentes, muitas vezes fortemente blindado contra o próprio exercício estatal de controle sobre a comunicação.
É claro que essa assertiva não quer fazer crer que os Estados não mais detenham qualquer participação na mídia. Contudo, ainda que os governos realizem certa influência sobre a mídia, boa parte de seu poder já foi perdida, tirante, óbvio, aqueles casos excepcionais em que os veículos de comunicação ainda estão sob o rígido controle de Estados autoritários.
Considerando que os governos de todo o mundo também pretendem se tornar globais e a mídia global é a sua ferramenta de acesso, não raro eles acabam optando por sistemas de comunicação interativos que, mesmo se operados com cautela e de forma calculada, acabam comprometendo os controles sobre a comunicação. A comunicação via computador, de sua parte, também foge ao controle do Estado, abrindo as portas a uma nova era de comunicação extraterritorial.
Frente a isso, o princípio da dignidade da pessoa humana assume papel deveras importante, na medida em que figura como importante fator de resgate da própria essência do Estado Contemporâneo, fortificando o ser humano em seu aspecto jurídico-social e fazendo com que o Estado renasça frente aos seus inimigos.
Hoje, a dignidade humana está definida como um princípio informador do Direito, que, apesar do total desprezo por ela dispensado, precede ao próprio Direito, pois nasceu juntamente com o homem, desempenhando um papel importantíssimo na vida social e econômica.
Aliás, a vinculação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais já constitui mesmo um dos postulados nos quais se assenta o Direito Constitucional contemporâneo. Percebe-se que no moderno pensamento filosófico e social a questão da dignidade da pessoa humana está ganhando cada vez mais espaço como uma temática verdadeiramente central, pilar da própria existência social.
A idéia de valor intrínseco da pessoa humana, simplesmente por ser tal – uma pessoa humana – deita raízes já no pensamento clássico e no ideário cristão. É no pensamento de Kant que a doutrina jurídica mais expressiva ainda hoje parece estar identificando as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade da pessoa humana.
Da concepção jusnaturalista remanesce, indubitavelmente, a constatação de que uma ordem constitucional que consagra a ideia de dignidade da pessoa humana parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão-somente de sua condição humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado.
A dignidade, por óbvio, não existe apenas onde é reconhecida pelo Direito e na medida em que este a reconhece, já que constituiu dado prévio, no sentido de preexistente e anterior a toda e qualquer experiência especulativa. Todavia, importa não olvidar que o Direito poderá exercer papel crucial na sua proteção e promoção.
Na condição de limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade necessariamente é algo que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado. Assim, a dignidade, na sua perspectiva assistencial da pessoa humana, poderá, à vista dessas circunstâncias, sobrepor-se em face da crescente globalização das culturas contemporâneas, onde a riqueza, a informação e a internacionalização estão em primeiro plano, sem qualquer preocupação com a pessoa humana e com a dignidade que lhe é imanente, em especial com relação àqueles que estão inseridos no campo de trabalho.
Impõe-se o seu reconhecimento e proteção pela ordem jurídica, que deve zelar para que todos recebam igual consideração e respeito por parte do Estado e da comunidade, o que, de resto, aponta para a dimensão política da dignidade.
O que se pode perceber, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta, por sua vez, será constante vítima de arbitrariedades e injustiças.
O Estado Constitucional Democrático da atualidade é um Estado, pois, de abertura constitucional, radicado no princípio da dignidade do ser humano. É exatamente o que se vê, por exemplo, do disposto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal do Brasil.
Com efeito, também os assim denominados direitos sociais, econômicos e culturais, seja na condição de direitos de defesa (negativos), seja na sua dimensão prestacional (atuando como direitos positivos), constituem exigência e concretização da dignidade da pessoa humana.
À vista deste contexto, verifica-se que o princípio da dignidade da pessoa humana não apenas impõe um dever de abstenção, mas também legitima condutas positivas tendentes a efetivar e proteger a dignidade do indivíduo.
Como já ficou consignado, com o crescimento do poderio econômico, o desenvolvimento tecnológico e a imprensa cada vez mais veloz, o Estado Contemporâneo está mais fragilizado e enfrenta dificuldades como tutor das garantias e direitos fundamentais da população. De fato, os Estados Contemporâneos têm se transformado de sujeitos soberanos em atores estratégicos, defendendo interesses que se espera representem um sistema voltado para a globalização, dentro de uma soberania sistematicamente compartilhada.
O futuro é incerto, realmente. Não há como prever qual será a solução para um acordo entre todos esses poderes e a garantia dos direitos dos cidadãos, mas a luta deve ser por um espaço público cada vez mais democrático. E apesar de estarem previstas na Constituição Federal, a batalha para assegurar as garantias deve ser constante. Diferente da época dos regimes de exceção no país, o Estado não pode ser mais confundido com um inimigo do cidadão – muito pelo contrário, é o cidadão que legitima a própria existência do Estado.
Porém, a efetiva possibilidade de uma humanização e civilização da globalização econômica, com a consequente neutralização ou pelo menos redução dos seus efeitos vorazes em relação ao homem, encontra forte sustentáculo a ideia de uma globalização jurídica a partir do referencial da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais que lhe são inerentes. Noutras palavras: tem-se tentado imprimir um conteúdo ético à globalização, resgatando, com isso, no eixo central da dignidade da pessoa humana, o fator de legitimação do próprio Estado, em si mesmo considerado.
Quando se fala da existência de um homo globalizatus, considerando a cada vez maior facilidade de acesso às comunicações e informações, bem como a capacidade de consumo de parte da população mundial, urge que, na mesma medida, se possa também vir falar numa correspondente globalização da dignidade e dos direitos fundamentais, sem a qual, em verdade, o que teremos cada vez mais é a existência de alguns “homens globalizantes” e uma multidão de “homens globalizados”, sinalizadora de uma lamentável, mas cada vez menos contornável e controlável, transformação de muitos Estados democráticos de Direito em verdadeiros “estados neocoloniais”.
E é no principio da dignidade da pessoa humana que o Estado Contemporâneo pode ressuscitar sua identidade, esta perdida com advento de uma sociedade globalizada em que o capitalismo, atrelado aos principais meios de comunicação, vem absorvendo o sentido do homem digno, fazendo com que, consequentemente, tal principio sucumba frente ao poderio dos países e das empresas imperialistas.
Basta que o Estado desenvolva políticas econômicas que viabilizem o desenvolvimento da Nação. Basta que haja o pleno exercício da liberdade, em sua acepção substancial. Basta, enfim, que o ordenamento jurídico esteja efetivamente voltado para a manutenção do Estado Democrático de Direito, em que, verdadeiramente, seja salvaguardada a dignidade da pessoa humana.
Como se sabe, temos, hoje, redes globais de poder, riqueza e informação. O Estado já não é mais o mesmo. O perfil dos inimigos do Estado está cada vez mais indefinido. Nessa nova formatação sócio-política, o Estado deve se voltar à dignidade da pessoa humana, dando concretude jurídica ao homem, enquanto ser que legitima a existência do próprio Estado. Esse redirecionamento, tendência no plano internacional, representa, a meu ver, um genuíno resgate, uma (re)formulação, uma dinâmica e ousada mudança de atitude apta a (re)legitimar a própria identidade do Estado, enquanto ser que existe não apenas para gerir o poder, senão que acima de tudo para tutelar o homem.
E em um espaço onde não mais se vê o inimigo, há que se olhar para si próprio.
Afinal, é mudando o homem que se muda o mundo…
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas da Possibilidade à Necessidade de Respostas Corretas no Direito. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008.
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Ney Maranhão. Juiz do Trabalho (TRT da 8ª Região – PA/AP). Doutorando em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Università di Roma – La Sapienza (Itália). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA – campus de Marabá/PA). Professor Mestre (licenciado) do Curso de Direito da Faculdade do Pará (FAP) (em nível de graduação). Professor convidado da Universidade da Amazônia (UNAMA) e do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) (em nível de pós-graduação). Professor convidado das Escolas Judiciais dos Tribunais Regionais do Trabalho da 8ª (PA/AP), 14ª (RO/AC) e 19ª Regiões (AL). Membro (Honorário) do Instituto Goiano de Direito do Trabalho (IGT). Membro (Conselheiro) do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (IPEATRA) (biênio 2011-2013). Membro (Pesquisador) do Instituto Brasileiro de Direito Social Cesarino Junior (IBDSCJ). Autor e coordenador de obras jurídicas. Articulista junto a periódicos especializados. Subscritor de capítulos integrantes de obras coletivas.