Trata da legalização por vias reflexas da prática do abortamento no sistema legal brasileiro de acordo com o novo projeto de Código Penal.
Embora a população brasileira seja em sua esmagadora maioria altamente conservadora e contrária ao aborto, há forte movimento em prol da liberação dessa conduta, com consequências jurídicas diretas e indiretas. Isso ocorre porque a grande massa majoritária é amorfa e desarticulada, ao passo que os movimentos contrários são organizados e articulados com grande eficiência, ganhando a mídia e repercussão. É como se um anão com voz tonitruante dominasse um gigante mudo e paralítico. Daí advém o risco paradoxal numa democracia que é o da imposição de uma “ditadura das minorias”.
É cristalino que o argumento para a criminalização do aborto está centrado no bem jurídico vida humana que merece proteção, desde sua previsão constitucional básica até a regulamentação em tratados internacionais como o Pacto de São José da Costa Rica, firmado pelo Brasil, onde a vida humana é protegida “desde a concepção”.
Doutra banda exsurgem os argumentos feministas, por exemplo, apontando o abortamento como um suposto “direito da mulher à livre disposição do próprio corpo”, olvidando-se que a mulher no aborto não dispõe do próprio corpo, mas de outro corpo (o do concepto).
Há ainda argumentos para a descriminalização que pretensamente se apoiam em teses criminológicas e sociológicas, sem necessariamente assumirem uma defesa da conduta sob o ângulo moral.
Um deles é o argumento do minimalismo penal, segundo o qual somente condutas universalmente consideradas como crime deveriam ser criminalizadas. Como o abortamento é permitido em muitos países, deveria ser objeto de descriminalização. A falácia está no fato de que a universalidade é um critério falho e inseguro que não permitiria nem sequer a criminalização do homicídio, já que há sociedades primitivas em que este é permitido ou ao menos ritualizado. [1] Inclusive a chamada “cifra negra”, ou seja, a diferença entre a criminalização primária (previsão legal do crime) e a criminalização secundária (efetiva aplicação da lei) é também enorme em muitos outros tipos, inclusive no homicídio.
Fica nítido que a cifra negra pode ser um bom indicador para descriminalização sob enfoque minimalista, mas somente quando a conduta criminalizada também trouxer consigo a desimportância do bem jurídico a indicar seu não merecimento à ereção em bem jurídico – penal, pois se sabe que nem todo bem jurídico precisa ser necessariamente um bem jurídico – penal.
Esse juízo sobre a relevância do bem jurídico em jogo é muito importante para a formação de uma convicção sobre a descriminalização. Se a cifra negra provém do desinteresse estatal na perseguição das condutas no campo criminal, devido à sua pouca relevância social, justifica-se a descriminalização. Mas, se o que produz a cifra negra não é isso. O bem jurídico é relevante e somente as condutas não são devidamente apuradas e apenadas porque o Estado é incompetente, não detém estrutura suficiente para uma devida investigação, então o problema não está na lei e sim nas condições materiais e humanas dos órgãos de repressão e prevenção estatais. Observe-se que o aborto é um crime contra a vida, ele atinge o bem jurídico mais importante possível, sem o qual outros bens de nada servem. Será que por haver um baixo índice de esclarecimentos de homicídios alguém iria pensar em descriminalizar essa infração penal gravíssima? Ou então, para não dizer que se está fazendo sensacionalismo. É um dado real que os furtos têm baixíssimo índice de esclarecimento. Devemos então liberar a prática do furto? Bem, pelo menos o patrimônio é um bem jurídico menos valioso do que a vida humana. Mesmo assim não é crível que alguém defenda a descriminalização do homicídio ou do furto, por que seria diverso com o aborto?
Outra fundamentação para a liberação do abortamento menciona o problema da assistência médica às mulheres carentes. A criminalização levaria a uma situação terrível as gestantes mais carentes. Enquanto as mais abastadas poderiam realizar abortos ilegais em clínicas particulares com toda assistência e higiene; as pobres não poderiam ser atendidas nem pela assistência médica gratuita, já que o aborto é crime e não pode ser realizado pela rede pública de saúde. No entanto, isso não impede que essas mulheres venham a praticar abortos sem qualquer assistência médica ou “assistidas” por “parteiras”, em locais os mais anti – higiênicos e com métodos totalmente inadmissíveis. Haveria violação ao Princípio da Igualdade criada pela diferença de poder financeiro entre as pessoas, o que não justificaria a discriminação.É preciso salientar que a liberação do aborto pelo mundo afora não tem melhorado em nada as condições de sua prática pela população pobre ou miserável.
Hércules apresenta pesquisa que comprova que na Índia, onde o aborto é liberado desde 1971, as práticas clandestinas e perigosas continuam predominando no seio da população pobre. [2] O problema não é o aborto e sim a desigualdade de acesso à saúde em geral, mesmo em procedimentos médicos legalizados. Será que no Brasil seria diferente? Respondo: uma pessoa leva meses ou até anos para conseguir vaga para um simples exame ou uma cirurgia urgente. Há pessoas morrendo em filas de atendimento nos hospitais. Será que com a liberação do abortamento, milagrosamente, e inclusive passando na frente de pessoas com problemas de saúde graves, o Estado brasileiro iria passar a realizar abortos com hora marcada, rapidamente, para todas as gestantes carentes que o quisessem? Somente um tolo acreditaria nisso. Ademais, um argumento jurídico se impõe: num sistema de saúde todo desigual e diante de uma constituição que coloca o bem jurídico vida como amplamente tutelado, será que a reforma dessa desigualdade deveria se iniciar matando fetos e embriões? Essa é a prioridade de equalização do atendimento na saúde brasileira? E os doentes que precisam de tratamento, de exames, de cirurgias? E as gestantes que querem ter seus filhos, fazer um pré – natal decente e ter um parto adequado? E os homens e mulheres que querem ver seus filhos crianças e adolescentes devidamente atendidos nos hospitais públicos, que em nenhum momento pensam em matá-los ou deixá-los morrer? Eles ficam para depois, depois vemos como fica essa desigualdade toda, primeiro vamos matar o máximo de fetos possíveis, para só depois, bem depois, talvez nunca, pensar nos vivos. Somente um raciocínio reducionista e altamente tortuoso chegaria a esse grau de perversão, mas o incrível é que chega e que convence a muitos!
O acima exposto já seria suficiente para a questão, entretanto, há um argumento que não pode deixar de ser desenvolvido neste trabalho e que diz respeito a um princípio bioético, o “Princípio da Precaução”.
Pretende-se tão somente analisar a coerência lógica de um dos argumentos que sugere a não intervenção no processo de desenvolvimento da vida humana manifestado pela gravidez. Esse argumento sugere que há, pelo menos, sérias dúvidas acerca da existência de uma vida humana a ser tutelada a partir da concepção e tal dúvida seria o bastante para indicar a vedação ética às práticas abortivas.
Essa linha de pensamento é exposta por Norbert Rouland, que destaca o fato de que a grande questão não é saber se após a concepção há uma vida, mas sim se tal vida, indubitavelmente presente, pode já ser considerada uma vida humana. Se for certo que o aborto dá fim a uma vida, pode haver sérias dúvidas quanto a poder ser essa vida já considerada humana. No entanto, a presença da dúvida deveria militar em favor da vida humana e contra as práticas abortivas. [3] Afinal quem defenderia a tese de que na dúvida de haver uma pessoa dentro de um prédio poder-se-ia optar por implodi-lo sem qualquer culpa?
O autor defende a cautela estabelecida em prol da vida humana que passa a ser tutelada com a proibição do aborto pela legislação e até sua criminalização. Havendo a dúvida quanto à humanidade do concepto, a possibilidade ainda que remota de lesão a uma vida humana não permitiria a assunção do risco, de forma que a “transformação do aborto num direito subjetivo, sua possível banalização” seria um extremo lamentável. Ao suposto direito subjetivo das gestantes de optarem pela interrupção da gravidez opor-se-ia o fim de “proteger a pessoa, se necessário limitando os direitos subjetivos, operação que nada tem de escandalosa, tamanha é sua frequência em todas as áreas do direito (a propriedade privada pode ser expropriada; a teoria do abuso de direito veda ao titular de um direito usá-lo para prejudicar o próximo)”. [4]
Frente a essa polêmica e à clara tendência da população brasileira contrária à descriminalização, o legislador apresenta uma formulação normativa marcada por conduta insidiosa, onde não se assume uma posição sincera e corajosa. Opera uma verdadeira descriminalização camuflada.
A tática é manter os tipos penais, mas ampliar desmesuradamente as hipóteses de aborto legal, o que redunda na liberação disfarçada do abortamento. Já não é mais somente o aborto terapêutico aquele para “salvar a vida da gestante”, mas também para prevenir “risco” à sua “saúde”. A ampliação é feita sem qualquer critério quanto à definição desse risco e aos métodos e regras para a sua aferição. Também o chamado aborto sentimental não é mais só para aquela gravidez originada de “estupro”, mas de qualquer “violação da dignidade sexual”, ou seja, mesmo em casos que não envolvam violência ou grave ameaça como, por exemplo, uma “violação sexual mediante fraude”, muito facilmente dissimulável pela mulher. Embora possa ser considerada uma inovação que condiz com o atual estágio da ciência de reprodução, a inclusão do permissivo para o aborto em casos de “emprego não consentido de técnica de reprodução assistida” será difícil de operar-se na prática, a não ser como subterfúgio para legalizar abortos ilegais. A anencefalia, já reconhecida pelo STF como passível de permitir a intervenção na gravidez, é agora legalizada. Entretanto, não há o cuidado, como houve na decisão judicial, de deixar claro que não é propriamente o aborto que está sendo permitido, mas a remoção de um natimorto quando não há qualquer atividade cerebral. Na verdade, o formato que se pretende legalizar configura uma espécie de aborto eugênico, já que não há essa observação e permite-se claramente a extinção de conceptos vivos que apresentem prognóstico firmado por dois médicos (diga-se de passagem, passível de equívoco) de inviabilidade de vida extrauterina.
Mas, o paroxismo da insídia vem no inciso IV do artigo 128 do Projeto, quando o aborto é permitido, até a décima segunda semana de gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade! Isso é a liberação total do aborto e a conversão dos crimes em letra morta. Trata-se de subestimar a inteligência das pessoas que conformam a grande massa da população brasileira. Mas essa conduta é compreensível, tendo em vista, como já dito, que essa massa é amorfa, desarticulada e silenciosa, enquanto uma minoria barulhenta é capaz de conduzir processos jurídicos, sociais, econômicos e culturais a seu bel prazer. A verdade é que a partir do momento que uma mulher grávida diz que não quer ter a criança e que quer abortar ela não está psicologicamente preparada para a maternidade. Petição de Princípio da pior espécie, raciocínio circular induzido, profecia que se autorrealiza. No mínimo, esse dispositivo vai criar uma espécie de mercado macabro de atestados psicológicos e médicos para fins de aborto. Essa hipótese é tão insidiosa em sua amplitude que recentemente, ao menos no último relatório do Senador Pedro Taques, foi excluída, mas deve-se lembrar que o projeto ainda está em trâmite e passará pela Câmara dos Deputados.
Resta então o alerta ao gigante mudo e paralítico brasileiro. É hora de abrir a boca, manifestar-se e agir, afinal a lei, seja ela qual for, deve refletir o espírito de um povo e respeitar as diretrizes constitucionais e transconstitucionais, as quais, neste caso em especial, referem-se à defesa do bem jurídico mais precioso de todo ordenamento.
REFERÊNCIAS
GIRARD, René. A violência e o sagrado.3ª. ed. Trad. Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra/ Unesp, 1990.
HÉRCULES, Hygino de Carvalho. Medicina Legal: texto e atlas. São Paulo: Atheneu, 2008.
ROULAND, Norbert. Nos Confins do Direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Notas
[1] Cf. GIRARD, René. A violência e o sagrado.3ª. ed. Trad. Martha Conceição Gambini. São Paulo: Paz e Terra/ Unesp, 1990, “passim”.
[2] HÉRCULES, Hygino de Carvalho. Medicina Legal: texto e atlas. São Paulo: Atheneu, 2008, p. 583.
[3] ROULAND, Norbert. Nos Confins do Direito. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 343.
[4] Op. Cit.., p. 346.
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Eduardo Luiz Santos Cabette. Delegado de Polícia. Mestre em Direito Social e Pós-Graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na Graduação e na Pós-Graduação da Unisal. Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.