Anencéfalo: vida “sem qualidade”

Onde se permite o aborto de anencéfalos não há estado de direito. A Constituição protege a vida, e não “a vida viável” ou “a vida de qualidade”. O Supremo Tribunal Federal desrespeitou a Constituição ao permitir o aborto de anencéfalos.

Lamentavelmente, o homem costuma repetir os mesmos erros do passado. Muitos se indignam, por exemplo, com o fato de a escravidão do negro já ter sido admitida. A indignação é louvável e justíssima; o problema é não enxergar a escravidão – na verdade, algo muito pior – acontecendo em nossos dias.

O assassinato silencioso de homens e mulheres inocentes no ventre de suas mães – sim, assassinato que alguns tentam dissimular por meio de malabarismos semânticos como o uso da expressão “interrupção da gravidez” – é algo de que nos envergonharemos brutalmente no futuro. Ele é uma chaga aberta da sociedade atual.

No Brasil, não há mais Estado de Direito. E isso desde que o Supremo Tribunal Federal, por oito votos contra dois, decidiu que o anencéfalo é um ser humano de segunda categoria, cujo direito à vida é inferior a um suposto direito de bem estar psíquico de suas mães. Observe-se, porém, que esse suposto direito de bem estar psíquico é também uma falácia, pois os relatos de mães que levaram a termo a gravidez de anencéfalos é de grande serenidade, de paz e sensação de dever cumprido.

Várias objeções podem ser feitas à decisão do STF. Em primeiro lugar, ele usurpou competência do Congresso Nacional, atuando como legislador positivo e criando hipótese de aborto eugênico não prevista pela lei.

Além de usurpar competência do Congresso Nacional, a inovação legislativa promovida pelo STF – aliás, contrária à vontade da população – atenta contra a Constituição, visto que o direito à vida, agasalhado pelo seu art. 5.º, não possui condicionantes ou adjetivos: a Constituição protege a vida, não a “vida viável”, “a expectativa de vida” ou “a vida de qualidade”. Isso sem falar em que seria temeridade enveredar por definir o que seja “vida viável”, “expectativa de vida” (dias, meses ou anos?) ou “vida de qualidade”. A medicina não é ciência exata. Mas o STF entendeu que o anencéfalo não é uma “vida de qualidade”.

Se no passado houve um grupo de homens – utilizo a palavra “homens” no sentido de ser humano – destituído de praticamente todo e qualquer direito, os escravos, hoje surge novo grupo de homens considerados de segunda categoria: os nascituros e, no específico caso dos anencéfalos, as “vidas sem qualidade”.

Já tive oportunidade de dizer que o entendimento do STF equivaleria a afirmar que um homem, um ser humano, é determinado por uma régua escolar: 10 cm de cérebro, 15 cm disso ou daquilo. Ora, isso é eugenia. Não é o tamanho do cérebro que define o que é o homem. O que define um homem é ser um indivíduo da nossa espécie.

Dizer que o anencéfalo é um ser morto constitui uma falsidade gritante, visto que ele apodreceria dentro do ventre materno, gerando inúmeras complicações de saúde, coisa que não ocorre. Tanto não ocorre que não é invocado, no caso do anencéfalo, o inciso do Código Penal que trata do aborto terapêutico, isto é, o que é realizado para salvar a vida da mãe.

Demais disso, alguns outros pontos chamam a atenção no debate sobre a legalização do aborto (a questão do anencéfalo é apenas o dedo mindinho da discussão). As feministas reivindicam um direito próprio; um suposto direito de autodeterminação sexual, de bem estar psíquico e de fazer o que quiserem com o seu corpo.

Não obstante, a própria existência do Poder Judiciário e das regras de impedimento e suspeição existentes no direito processual demonstram que ninguém é bom juiz da própria causa. Por mais idônea que seja a parte interessada, ao defender um direito (ou suposto direito) próprio, entra o componente passional, que compromete um juízo isento, imparcial.

Por essa razão, os argumentos feministas devem ser tomados com extrema cautela, porque são passionais e desviam o foco da discussão.

Por outro lado, os que se opõem à legalização do aborto defendem direitos de terceiros, não estão atuando em causa própria. Só por aí começam a levar vantagem sob o aspecto da imparcialidade. Não há, no caso, motivações egoísticas, mas motivações altruístas. Os defensores dos homens não nascidos protegem direitos de terceiros.

Outro aspecto, é que os abortistas, em regra, utilizam malabarismos, contorcionismos verbais, temendo que o público compreenda qual é o fenômeno real que se passa: o derramamento brutal de sangue humano inocente. Ao invés de o Estado colocar o seu aparato a serviço e na defesa dos seres humanos mais indefesos, os nascituros com má-formação (essa é a lógica do Estado de Direito!), ele faz exatamente o contrário: se põe do lado do mais forte (essa é a lógica da barbárie). No confronto entre a mãe e o feto malformado, prefere o Estado optar pelos direitos da primeira, chamando o segundo de “matéria morta”, de “vida sem qualidade”. Isso não é de espantar, pois o negro também já foi considerado uma coisa, mera propriedade do seu senhor. Mas talvez, pelo menos, tenha sido considerado uma coisa viva.

Seria interessante submeter os abortistas a um teste. Gostaria de perguntar-lhes o seguinte: caso os senhores estivessem convencidos de que o anencéfalo é um ser humano vivo, a sua opinião sobre o aborto ou interrupção da gravidez de anencéfalos seria diferente? Acredito que não seria. As distinções semânticas utilizadas pelos defensores do aborto destinam-se apenas a facilitar a consecução dos seus objetivos. Para o abortista, não importa tanto o fenômeno real. Ele quer o resultado: a liberação da prática. Ao contrário, para os defensores dos homens em gestação, entender o fenômeno real é imprescindível. Os fatos determinam qual é a regra de direito aplicável.

Por último, fica às pessoas de boa vontade a advertência: é o Presidente da República que escolhe os Ministros do STF. Um voto mal empregado pode resultar em derramamento de sangue. Será que não temos uma culpa gravíssima no caso?

Artigo elaborado em setembro de 2013.

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Paul Medeiros Krause. Procurador do Banco Central. Bacharel em Direito pela UFMG. Ex-analista processual na Procuradoria da República do Estado de Minas Gerais.

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