O tema da laicidade tem me ocupado nos últimos anos. Vez por outra sou instado a fazer breves considerações sobre essa esfera que procura regular a atuação dos religiosos no espaço público. Esse é um assunto (por vezes) controverso, ainda mais porque alguns querem enxergar a prescrição, em nosso ordenamento, do laicismo, que implicaria em um rechaço das religiões da esfera pública. Agora, neste brevíssimo texto, pretendo demonstrar que o Estado, de fato, muitas vezes não mantém as mesmas posturas quando pretende dimensionar a atuação das religiões, provocando situações deveras inusitadas. Pois bem.
“O Estado é laico!” Essa é uma das expressões mais usadas pelos laicistas quando pretendem admitir matérias que contrariam a moralidade religiosa. Em breves exemplos, isso se deu na aprovação da união estável homossexual e na liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias ou do aborto de anencéfalos. É esse o argumento, também, dos que desejam a retirada dos símbolos religiosos das repartições públicas e a legalização das drogas. Parece que tudo se restringiria a um “fundamentalismo cristão”, como já asseverou o deputado Jean Wyllys. Já o rebati em outro texto (“Fundamentalismo cristão”? Uma breve resposta a Jean Wyllys) e não vou fazê-lo novamente.
Nesses casos, temos uma postura estatal que tende a excluir a influência da moralidade religiosa de suas pautas. E me refiro ao Estado de uma maneira abrangente, pois abarca os poderes Judiciário (nos casos decididos pelo STF), Legislativo (as discussões travadas em ambas as Casas do Congresso) e Administrativo (algumas propostas dos PNDHs são um referencial).
Por outro lado, há um dispositivo constitucional que tem feito esse mesmo Estado agir de forma a atrair as ações dos religiosos. É que nossa atual Carta, ao tratar da organização do Estado, proíbe qualquer ente político – leia-se União, Estados, Distrito Federal ou Municípios – de “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19, I).
E o “pulo do gato” estatal está justamente nessa possibilidade de “colaboração de interesse público”. Embora nosso ordenamento não defina o que seria esse interesse, a Lei nº 9.790/1999 nos aponta, dentre outros, a promoção dos seguintes: assistência social, cultura, ética, cidadania, direitos humanos e outros valores universais. Isso nos permite afirmar que, estando em jogo o avanço dessas questões, o Estado pode solicitar a presença religiosa em caráter colaborativo.
Tornando a questão um pouco mais concreta, vou comentar apenas dois casos. No 2º Seminário de Assistência Religiosa e Políticas sobre Drogas, evento oficial da Secretaria de Estado e Defesa Social realizado na capital mineira em 28 de novembro de 2014, foi enfatizado pelo superintendente de Atendimento ao Preso, Helil Bruzadelli, o impacto deveras positivo que a assistência religiosa intra muros tem provocado para a ressocialização dos presos. No mesmo passo, em recente reunião o Pr. Fernando Brandão, Diretor Executivo da Junta de Missões Nacionais da Convenção Batista Brasileira, responsável pelas Cristolândias (com notável sucesso na reinserção social de dependentes químicos, baseia sua metodologia em princípios cristãos e opera em três áreas do indivíduo, quais sejam, espiritual, emocional e física), disse que tem recebido inúmeros ofícios de órgãos públicos solicitando a implantação dessas Cristolândias em seus municípios.
O que se percebe é um Poder Público ineficiente no combate a problemas sociais endêmicos, aqui representados pelos altos índices de reincidência criminal e de pessoas que estão nas ruas sendo destruídas pela dependência das drogas. No limite, ambos os casos se relacionam na medida em que cerca de 80% dos presos ali estão por conta de algum tipo de envolvimento com as drogas.
Estamos, pois, diante de uma “laicidade self service“. O Estado, por um lado, quer a religião e sua moralidade atuando junto a setores marginalizados; por outro, quando a proposta religiosa vai de encontro a outras proposições ideológicas – que têm ganhado força nos últimos anos, como a relativização da vida e da família tida como “tradicional” -, quer lançá-la no esquecimento.
É preciso que o Estado respeite a mantença da religião num espaço que tende à secularização e que, mesmo assim, opera pela inauguração, ou continuidade, de uma efervescência religiosa.