O instituto da separação na ordem jurídica nacional

Desde os idos de 2010, através da Emenda Constitucional nº 66, nossa Carta Magna não mais exige que a dissolução do casamento, pelo divórcio, se dê somente “após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos”. Desde então restaram suprimidas as exigências da separação judicial ou de fato, fazendo-se constar que “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.” (art. 226, §6º)

Após a Emenda, surgiram vozes no sentido de que o instituto da separação teria sido abolido do nosso ordenamento, bem como todos os seus consectários, como a discussão da culpa (CC/2002, art. 1.572). E, vale lembrar, a separação tem o condão de pôr “termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens” (CC/2002, art. 1.576, caput), bastando um pedido simples, de ambas as partes, para a homologação judicial do restabelecimento da sociedade conjugal. Lado outro, extinto o vínculo matrimonial, que ocorre tão somente pelo divórcio, apenas novo casamento fará a recomposição da unidade familiar.

Mas agora aparece a defesa de Lenio Streck, no artigo Por que é inconstitucional “repristinar” a separação judicial no Brasil, de que a “separação judicial fundamenta-se em forte rastro ideológico-religioso”, sendo a mesma criada “a fim de permitir aos cônjuges repensarem sua situação de separados judicialmente”; contudo, assevera o autor, “esse tipo de intromissão do Estado na vida dos casais fere claramente a secularização.”

Eis o ponto! Basta alegar uma veia religiosa para tudo descambar para a secularização e a laicidade, tão apregoada hodiernamente! Contudo, vejamos.

As implicações nefastas da separação de um casal na vida dos filhos são cristalinas e ululantes. Laboro há mais de sete anos em uma Vara de Família e não há prova mais inequívoca de que as relações afetuosas se dissipam ao sabor do vento quanto o aumento estrondoso na distribuição de ações judiciais nessas varas especializadas. As discussões de alimentos, guardas e visitas – sem falarmos nas investigatórias de paternidade – retratam um pouco da liquidez baumaniana de nossos tempos. As pessoas se esquecem – ou fingem o esquecimento – de que, com o casamento, assumem os deveres de fidelidade, de “vida em comum”, de “mútua assistência”, de “sustento, guarda e educação dos filhos” e de “respeito e considerações mútuos” (CC/2002, art. 1.566).

A modernidade do self e da satisfação pessoal fazem brotar mesquinharias as mais diversas. Qualquer mero desentendimento já é motivo para o abandono do lar e para os argumentos judiciosos de insuportabilidade da vida em comum. Mas vale lembrar que a “impossibilidade da comunhão de vida” pode – frise-se, pode – ocorrer pelos motivos do adultério, “tentativa de morte”, “sevícia ou injúria grave”, “abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo”, “condenação por crime infamante” ou “conduta desonrosa”, além de outros que a tornem evidente (CC/2002, art. 1.573).

Já presenciei casos de reconciliação em uma sessão de julgamento. Desentendimentos cotidianos, que quase arruinaram um casamento, ruíram diante de um pedido de perdão e de uma nova chance. O casal, à época com duas meninas, precisava apenas de um lembrete de que a família é a “base da sociedade”, como apregoa o caput do art. 226 da Constituição.

Agora, retomando o elemento religião, se entendermos como Streck e levarmos seu argumento às últimas consequências, tudo aquilo que tivesse inspiração religiosa deveria ser banido do nosso ordenamento. Por certo, e para ficarmos com apenas um exemplo, deixaríamos de lado a dignidade da pessoa humana, reconhecido por inúmeros constitucionalistas como um princípio conquistado em razão do cristianismo. Afinal, foi somente a partir da doutrina judaico-cristã de que o homem foi criado à imagem de Deus que os seres humanos, intrinsecamente, passaram a ser dotados de eminente valor. Noutros termos, o cristianismo “ressalta a ideia de dignidade do homem como filho de Deus, reconhecendo a existência de um vínculo interior e superior, acima das circunstâncias políticas que determinavam em Roma os requisitos para o conceito de pessoa” (Gagliano e Pamplona Filho, Novo Curso de Direito Civil, 2008, p. 141).

Demais disso, pelo fato de nossa Constituição consagrar a liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI), extirpar do nosso ordenamento o instituto da separação seria violar as liberdades daqueles que, devido a convicções religiosas, filosóficas ou de qualquer outra ordem, somente aceitem, para si, a separação.

Pelo exposto, defendemos que restam mantidos a separação judicial, os deveres conjugais e a possibilidade de investigação da culpa pela insubsistência do matrimônio. Aliás, mesmo o menos romântico dos homens, ao se casar, anseia por uma união que perdure por toda a vida…

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