Potencial jurídico da assistência religiosa prisional

O cientista social português Boaventura de Souza Santos apresentou importantes contribuições à sociologia do direito, no fim do século passado, em “A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência – Para um novo senso comum – A ciência, o direito e a política na transição paradigmática – vol. 1 (São Paulo: Cortez, 8. ed., 2011).

Boaventura de Souza Santos propôs uma “cartografia simbólica do direito” que aponta que “ao contrário do que pretende a filosofia política liberal e a ciência do direito que sobre ela se constituiu, circulam na sociedade, não uma, mas várias formas de direito ou modos de juridicidade. O direito oficial estatal, que está nos códigos e é legislado pelo governo ou pelo parlamento, é apenas uma dessas formas, se bem que tendencialmente a mais importante. (…) Parto, assim, da ideia da pluralidade das ordens jurídicas ou, de forma mais sintética e corrente, do pluralismo jurídico” (p. 205).

Conforme o cientista social português o “Estado moderno assenta no pressuposto de que o direito opera uma única escala, a escala do Estado (…) a investigação sobre o pluralismo jurídico chamou a nossa atenção para a existência de direitos locais nas zonas rurais, nos bairros urbanos marginais, nas igrejas, nas empresas, no desporto, nas organizações profissionais. Trata-se de formas de direito infra-estatal, informal, não oficial e mais ou menos costumeiro” (p. 206).

Assim, “estas formas de direito criam diferentes objetos jurídicos à partir dos mesmos objetos sociais empíricos. Usam diferentes critérios para determinar os pormenores e as características relevantes da atividade social a ser regulada. Em suma, criam realidades jurídicas diferentes” (p. 207).

Outra importante contribuição dessa “cartografia simbólica do direito” está em reconhecer que “a vida sócio-jurídica é constituída, na prática, por diferentes espaços jurídicos que operam simultaneamente e em escalas diferentes. A interação e a intersecção entre os diferentes espaços jurídicos é tão intensa que, ao nível da fenomenologia da vida sócio-jurídica, não se pode falar de direito e de legalidade mas antes de interdireito e interlegalidade. A este nível é menos importante analisar os diferentes espaços jurídicos do que identificar as complexas e dinâmicas relações entre eles” (p. 208-209).

Um desses importantes campos de interação e intersecção dos diferentes espaços jurídicos se dá no direito penal estatal com o direito à assistência religiosa prisional, preconizado em tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário.

No caso brasileiro, sua Lei de Execução Penal (LEP) garante esse direito à assistência religiosa, de forma plurirreligiosa e espontânea, ou seja, garantindo a liberdade de culto, porém não obrigando o preso à sua adesão.

Por que, nesse caso, pode-se pensar em temos de pluralismo jurídico e interlegalidade/interdireito?

Tomem-se as comunidades de fé cristã, majoritárias no país. Para elas, a Bíblia constitui-se dos mandamentos divinos, leis, decretos, ordenanças, estatutos, etc., de seu Deus, formando dessa forma um campo jurídico próprio, que regula as ações dos participantes da fé cristã.

Este campo jurídico bíblico possui seu potencial próprio, que se diferencia daquele do direito penal estatal, embora a LEP aponte claramente para uma interface, interação, intersecção com a juridicidade bíblica, por exemplo, como uma das formas de assistência religiosa a que o preso pode espontaneamente usufruir.

O campo jurídico bíblico bíblico possui potenciais específicos que o campo jurídico penal estatal não pode cumprir, senão recorrendo ao expediente da assistência religiosa.

O direito penal tem como preceito punir, e analisando a legislação pertinente vê-se que não é seu propósito declarado a transformação da vida humana, no sentido de que abandone a delinquência. Não há nenhum expediente nesse sentido, claramente expresso, seja no Código Penal (CP), no Código de Processo Penal (CPP) e na LEP; esses documentos legais regulam as formas punitivas do Estado, e seu conteúdo não informa procedimentos que visem, claramente, à transformação da vida delinquente em uma outra de integração social e familiar.

Por isso, não é de se espantar que, em geral, na maioria dos casos, os expedientes punitivos do direito penal não recuperam os delinquentes, antes os lancem, ainda mais, em um processo de exclusão social e reincidência no delinquir.

Como afirmou um dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio, é uma ilusão que a prisão recupere alguém.

Desse fato, de que a prisão não recupera ninguém, a sociedade em geral extrapola em seus preceitos, afirmando que o delinquente é irrecuperável.

Um preso, líder de um grupo cristão em uma penitenciária paulista, e que colabora em nossas pesquisas sobre a temática da religião nas prisões, afirma o contrário. Ele diz que, embora parcela significativa da sociedade tenha o preconceito de que o delinquente é irrecuperável, não é o que a Bíblia afirma, pois a conversão genuína à fé cristã é testemunhada por uma transformação de vida profunda.

A Bíblia afirma: “Aquele que furtava, não furte mais; antes trabalhe, fazendo com as mãos o que é bom, para que tenha o que repartir com o que tiver necessidade. (…) Toda a amargura, e ira, e cólera, e gritaria, e blasfêmia e toda a malícia sejam tiradas dentre vós. Antes sede uns para com os outros benignos, misericordiosos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou em Cristo” (Epístola do Apóstolo Paulo aos Efésios, Cap. 4, vers. 28-32).

O genuíno cristão leva a sério essas palavras, e mesmo que venha a delinquir, abriga a esperança de ser perdoado e ter sua vida transformada de modo a evitar novos erros.

No Brasil há uma exitosa experiência que se estrutura nessa referida pluralidade jurídica e interlegalidade/interdireito, que é a Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC), que inclusive foi premiada em uma das edições do Prêmio INOVARE do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que prestigia e reconhece as boas práticas nesse campo.

As APACs são modelos prisionais que integram à rotina prisional os fundamentos das práticas cristãs, sobretudo, em uma juridicidade bíblica interagindo com a juridicidade penal estatal.

Nesses estabelecimentos prisionais praticamente não há fugas e os índices de reincidência são muito reduzidos se comparados aos modelos tradicionais das prisões.

As APACss são em número reduzido, uma exceção à regra prisional, mas que atesta que a efetiva colaboração entre compôs jurídicos distintos, porém interdependentes, pode apresentar resultados significativos à prevenção da delinquência e à integração dos egressos do sistema prisional ao convívio da comunidade e da família.

Texto originalmente publicado em 14/12/2015. 

* Sergio Gonçalves de Amorim. Possui pós-doutorado em Estudos Estratégicos pelo Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (INEST/UFF, 2013), é doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, 2011) e mestre em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (FTBSP, 2008). Concluiu Licenciatura (1999) e Bacharelado (1997) em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

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