A área de estudo denominada Sociologia do Direito visa compreender de que forma as leis que orientam as dinâmicas sociais de uma dada sociedade têm a sua origem e, principalmente, como um determinado conjunto de leis é vivido na prática no contexto social, ou seja, qual a vida da lei, onde, quando e como ela é aplicada, ou negada, que grupos favorece, se ela promove distinções ou não entre as pessoas, entre outros temas.
Quando pensamos em uma reflexão sociológica acerca do direito à assistência religiosa prevista na Lei de Execução Penal (LEP), têm-se em mente algumas destas questões.
Gostaríamos de enfatizar algumas delas, iniciando por um conceito proposto pelo professor de Sociologia do Direito da Universidade de Coimbra, Portugual, Boaventura de Souza Santos, que propõe uma cartografia do Direito, em que, ao trabalhar-se as diversas escalas da lei, pode-se observar significados distintos a uma dada legislação proposta pelo Estado, por exemplo, para regular uma pratica social, em nosso caso, a assistência religiosa na prisão, que tem um significado amplo e objetivo ao nível da LEP, genérico a toda sociedade, sem fazer distinções entre Estados da Federação, as unidades prisionais em seu interior, e a população carcerária que caracteriza uma cultura prisional em cada uma delas.
No Brasil, a LEP determina em nível federal como deve ser, em linhas gerais, a prestação de assistência religiosa nas unidades prisionais do país, porém, cada Estado da Federação regulamenta a legislação federal, incluindo diretrizes mais específicas, as quais, por sua vez, recebem instruções normativas ainda mais particularizadas conforme o poder de determinar regras dado a cada administração prisional em particular.
Com isso percebe-se que, embora haja uma orientação geral e ampla quanto ao expediente da assistência religiosa nas prisões, estas vão se diferenciando a medida que se particularizam a cada unidade prisional, compondo territórios diferenciados de direitos, por exemplo, regulando os dias e horas de visitação dos agentes religiosos, as formas de atendimento, o número de organizações que podem se fazer presentes em dada visita e número de agentes religiosos a cada vez, entre outros fatores.
Estas formas de territórios de direitos, embora não a partir desta forma conceitual, são objeto das pesquisas e publicações do pesquisador e líder religioso Antônio Carlos Júnior, sendo que ele pensa e propõe que tais territórios diferenciados venham a ser homogeinizados através de legislação federal que passasse a indicar como deveriam ser compostos tais territórios do direito à assistência religiosa nas prisões, regulandos-os em seus pormenores. Há inclusive, um de Projeto de Lei (PL) tramitando na Câmara dos Deputados, nesse sentido de criar territórios homogêneos de direitos relativos à assistência religiosa nas prisões, de autoria do deputado federal (Sóstenes Cavalcanti, DEM- RJ), sob orientação técnica de Antônio Carlos Júnior.
Esses movimentos de regulação jurídica da assistência religiosa nas prisões abrem algumas questões importantes e de profundidade no campo político e jurídico.
Uma regulação jurídica mais pormenorizada e de aplicação em uma escala tão ampla feriria princípios da não interferência entre os poderes da República, no caso o Legislativo ao tolher a discricionalidade do Executivo? E se assim fosse, não teria o PL um caráter autoritário e totalitário? Ao ditar os pormenores de como deveria ocorrer o exercício do direito à assistência religiosa nas prisões, tal PL não estaria a impedir o desenvolvimento de processos participativos ao nível local, negociados entre agentes religiosos e autoridades penitenciárias? Sendo assim, não seria mais interessante garantir tal espaço de gestão participativa da assistência religiosa, permitindo a construção de territórios jurídicos diferenciados, porém, a partir de processos democráticos de sua composição?
No momento não temos condições de responder a nenhuma dessas questões, embora pudéssemos formular hipóteses a serem confirmadas após ampla reflexão filosófica e científica, o que não se daria no escopo desse artigo.
Um segundo aspecto de uma sociologia do direito à assitência religiosa que gostaríamos de destacar, com base no conceito da cartografia religiosa proposta por Boaventura de Souza Santos, é o que esse direito viria a significar em escalas intermediarias de observação, como o das organizações religiosas, e em escalas de mais precisão, como ao nível de cada população carcerária.
Tais níves de uma cartografia do direito poderiam nos permitir visualizar outros níves de realidade em que tal direito à assistência religiosa daria lugar.
Apenas como hipóteses iniciais, que carceriam de maior rigor em sua composição, e mais ainda em sua demonstração, pensamos que entre outros fatores, o exercicio da prestação de assistência religiosa por organizações desta natureza, fovoreceriam projetos de poder hierocrático, conforme conceitua Max Weber, e de empoderamento de lideranças religiosas no seio das instuições a que pertencem, a despeito dos interesses altruistas presentes nas religiões.
E, em relação às população carcerárias, ainda nessa mesma linha de construção de hipóteses, dada a forma extremamente hierarquizada de exercício de poder entre os presos, inclusive com a presença de organizações criminosas atuando dentro e fora das prisões, como o exercício da assistência religiosa, interagiria com esse ambiente de violência e poder? A religião desenvolvida entre os presos parece ser um instrumento de controle da população carcerária, por parte dos presos que determinam como as práticas religiosas nas prisões devem ser exercidas, de modo que no contato de organizações religiosas com tais lideranças no interior do cárcere, tenderiam a perpetuar e reforçar o uso das práticas religiosas entre os presos como forma de exercício do poder na prisão.
Vê-se, portanto, que um simples expediente jurídico como o direito à assistência religiosa nas prisões possui amplas siginificações conforme as escalas de observação de uma cartografia do Direito, tornando muito relativas a execução da Justiça em cada uma delas, fazendo da lei, mais que instrumento de promoção de uma ética, tornando-a um meio do exercício do poder.
* Artigo recebido e publicado em 31/08/2017
* Sergio Gonçalves de Amorim. Possui pós-doutorado em Estudos Estratégicos pelo Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (INEST/UFF, 2013), é doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, 2011) e mestre em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo (FTBSP, 2008). Concluiu Licenciatura (1999) e Bacharelado (1997) em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).